Um estudo recente aponta que o sistema jurídico brasileiro, em vez de coibir, acaba por racionalizar a violência letal contra a população negra, utilizando-se de leis e regras para justificar atos que seriam considerados barbárie. A conclusão é de um professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), durante um debate sobre racismo, segurança pública e democracia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A pesquisa questiona a visão de que o sistema jurídico opera em conformidade com o Estado de Direito, contrastando com a ocorrência da necropolítica, onde o Estado decide quem vive e quem morre. Segundo o estudo, o sistema jurídico muitas vezes legitima a violência através de regras jurídicas.
Um exemplo citado é a aplicação seletiva da legítima defesa em casos de violência policial. O caso do músico morto em 2019, alvejado por militares com mais de duzentos tiros, é usado para ilustrar essa questão. Apesar da alegação de legítima defesa, a ação foi questionada pela família da vítima.
O ouvidor da polícia do Estado de São Paulo também participou do debate e ressaltou o componente racial nas mortes decorrentes de intervenção policial, concentradas em áreas específicas e afetando jovens negros.
Outro dado alarmante apresentado é o alto índice de arquivamento de processos envolvendo mortes em ações policiais. Em São Paulo, a maioria dos policiais envolvidos em homicídios tem seus processos arquivados, e mesmo nos casos que prosseguem, a absolvição é frequente.
Para o ouvidor da polícia, a instalação de câmeras corporais em toda a tropa da Polícia Militar poderia contribuir para a redução das mortes, tanto de civis quanto de policiais, ao exigir o cumprimento de protocolos. A preservação do local das ocorrências para a produção de laudos periciais também é apontada como medida relevante para a responsabilização dos agentes.
O desrespeito a normas processuais é outro ponto crítico. Uma pesquisa da FGV analisou condenações por tráfico de drogas e constatou que provas eram frequentemente obtidas por meio de invasões irregulares a domicílio, justificadas como “entrada franqueada”. A falta de preservação do local do crime e a ausência de exames periciais adequados também dificultam a responsabilização dos agentes do Estado. Uma pesquisa revelou que grande parte dos processos de mortes decorrentes de intervenção policial não tiveram exame de pólvora nas vítimas.
O professor da FGV argumenta que a utilização das regras jurídicas para perpetuar a violência contra pessoas negras é parte de um projeto político que envolve opacidade de dados e seletividade na implementação de políticas de segurança. Ele compara as mortes cometidas pelo Estado atualmente com as da ditadura militar, apontando continuidades na forma como essa violência acontece.
A pesquisa revela ainda que uma parcela significativa das vítimas de violência policial apresentava sinais de agressão anterior à morte, como hematomas e estrangulamento. Nos processos, a narrativa dos policiais de que agiram em legítima defesa muitas vezes prevalece, mesmo sem outros elementos que a comprovem.
Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br